Breve roteiro de arquivos digitais da Guerra Fria
Pedro Aires de Oliveira
Quando a expressão Guerra Fria surge à baila, que tipo de ideias ou impressões é que ela convoca? A resposta possivelmente dependerá muito do facto de termos vivido, ou não, esse tempo histórico. Para alguns de nós, digamos, europeus ocidentais nascidos antes de 1975, o «equilíbrio do terror» resultante dos arsenais nucleares das superpotências e dos seus «jogos de guerra» talvez seja a recordação mais vívida dessa era. Mas para quem nasceu noutras partes do mundo, sensivelmente no mesmo período, é provável que a expressão convoque outras memórias. Por exemplo, se tivéssemos nascido em certas partes de África ou da Ásia, golpes apoiados do exterior, operações clandestinas, guerras civis e invasões estrangeiras. Ou então, se vivêssemos algures na América Latina, bloqueios económicos, assassinatos extrajudiciais, «desaparecimentos».
Em todo o caso, o preço por nunca se ter chegado a «vias de facto» na disputa bipolar foi a prossecução dessa rivalidade através de terceiras partes (proxies), tantas vezes em conflitos imensamente destrutivos, quase sempre com consequências funestas para os direitos humanos. Nos EUA, essa circunstância passou a ser menos tolerada por alguns sectores da opinião pública desde meados da década de 1960. A consciência de que a administração e as chefias militares haviam sistematicamente iludido o Congresso no tocante ao envolvimento do país nos conflitos da Indochina alimentou investigações jornalísticas célebres (Pentagon Papers, entre outras) e veio dar alento a críticos que há muito se sentiam inquietos com a opacidade que uma cultura de «segurança nacional» introduzira no funcionamento do governo federal e das suas agências. Tudo isto ajudaria à aprovação do Freedom of Information Act em 1966, a iniciativa legislativa que viabilizou importantes avanços no conhecimento das políticas de Guerra Fria dos EUA, mas também a criação de um dos mais notáveis arquivos/centros de investigação (as duas coisas andam de par em par neste caso) nesse país. Refiro-me ao National Security Archive (NSA, a mesma sigla da ultra-secreta National Security Agency, por sinal), estabelecido em 1985 na George Washington University. Desde a sua fundação, o NSA e os seus membros têm sido incansáveis no recurso àquela legislação que, mediante a invocação de um interesse público superior, permite tornar pública documentação até aí classificada.
Uma certa veia «libertária» e não-conformista que é característica dos sectores mais liberais ou progressistas da academia e do jornalismo norte-americanos está bem patente em muitos dos projetos acolhidos no NSA. Muitos deles têm como cerne as questões relativas ao envolvimento dos EUA na desestabilização, ou derrube, de governos democraticamente eleitos na América Latina, mas o seu âmbito expandiu-se muito para lá de casos «clássicos» como o do Chile de Allende. Em matéria de direitos humanos, as continuidades entre a conivência dos EUA com ditaduras pró-ocidentais durante a Guerra Fria e o pós-11 de setembro ficam evidenciadas em vários projetos do NSA, desde o dedicado à Indonésia (e o seu envolvimento em Timor-Leste) a um mais recente sobre o emprego da tortura no contexto da «Guerra contra o Terror» (uma coleção de 16 mil documentos). O gosto por estabelecer paralelismos entre alguns eventos históricos e o presente é notório – veja-se, por exemplo, a secção sobre a repressão na Praça de Tiananmen em 1989 e a alusão às investidas policiais sobre manifestantes anti-racistas no Verão de 2020 no Parque Lafayette, em Washington D.C. (no futuro será interessante ver como é que elas terão sido reportadas por diplomatas, interrogam-se os responsáveis do NSA, que obtiveram a desclassificação dos telegramas da embaixada americana em Pequim em 1989). Mas para além destas questões mais mediáticas, há também enfoques centrados em episódios ainda hoje mal-esclarecidos, como o assassinato do académico radical Walter Rodney (o autor do célebre How Europe Underdeveloped Africa), em 1980, no seu país natal, a Guiana, onde o governo pró-americano de Forbes Burnham era alvo das suas frequentes críticas.
A forma como a informação está organizada e disponível no website é extremamente funcional e acessível. Eu próprio beneficiei disso há uns anos atrás quando estava a pesquisar o envolvimento do Reino Unido na descolonização interrompida de Timor-Leste em 1974-76 e consegui complementar as minhas buscas nos National Archives, em Londres, com a coleção entretanto construída pelo NSA por iniciativa do investigador independente Hugh Dowson. O enquadramento e comentário da documentação foi um excelente ponto de partida que tornou muito mais fácil a minha experiência «presencial» nos arquivos britânicos.
Para além de um motor de busca, existem várias secções temáticas (geralmente correspondendo a projetos), notícias, comunicados de imprensa, bem como informações sobre os muitos livros já produzidos a partir dos documentos desclassificados pelo NSA. Algumas coleções são apenas acessíveis através de uma assinatura da ProQuest, que muitas bibliotecas universitárias detêm. São geralmente dispendiosas para um utilizador individual, mas se a nossa busca for dirigida para um objetivo específico e limitado, existe a hipótese de um «free trial».
Para além de ser uma bênção para a investigação, o NSA pode também constituir-se como uma ferramenta pedagógica excelente. Exercícios com alunos a partir de fontes poderão ser facilmente imaginados. O mesmo aliás se poderá dizer acerca de outro arquivo digital de referência para quem se interessa por esta conjuntura histórica: o Cold War International History Project (CWIHP), alojado há vários anos no Wilson Centre, um think-tank fundado em 1968, dentro de uma filosofia «não-partidária» e em homenagem às ideias internacionalistas perfilhadas pelo presidente americano que deu um impulso decisivo à criação da Sociedade das Nações em 1919. Vários dos seus programas têm uma vocação claramente «presentista», visando sobretudo intervir em debates sobre determinadas regiões do mundo ou temas que possuem uma clara dimensão global (ambiente, segurança, saúde pública, etc.).
A grande mais-valia do CWIHP reside no facto das suas coleções documentais serem oriundas de arquivos espalhados por vários continentes e países. Proporciona-nos, assim, uma visão acerca dos dois lados da clivagem bipolar, ajudando-nos a transcender uma perspetiva puramente «ocidentalocêntrica». Elas podem ser pesquisadas através do motor de busca do Wilson Centre Digital Archive e correspondem a um conjunto de «dossiers temáticos» (que incluem tópicos tão variados como o programa nuclear do Brasil, a Conferência de Bandung, ou os documentos da NATO de Giulio Andreotti), com traduções em inglês dos documentos selecionados pelos colaboradores do CWIHP. Para investigadores interessados nas trajetórias pós-coloniais da África portuguesa e nos efeitos da Guerra Fria, a coleção criada a partir dos arquivos cubanos consultados por Piero Gleijeses para o seu livro Visions of Freedom (2013) pode ser particularmente útil.
Para além destes acervos, o Programa oferece-nos também uma secção de «Fontes e Métodos» com notícias ou notas metodológicas que nos colocam a par dos últimos desenvolvimentos neste campo (novas evidências documentais, controvérsias), ou simplesmente aproveitam uma efeméride para um novo olhar ou balanço sobre um momento do passado.
Por último, deixaria uma nota acerca de um espólio de história diplomática que beneficia de uma metodologia crescentemente popular entre quem se debruça sobre um passado mais próximo – a história oral. Refiro-me ao British Diplomatic Oral History Programme, alojado no Arquivo Churchill da Universidade de Cambridge. Trata-se de um acervo ainda vasto de entrevistas realizadas a membros do serviço diplomático britânico. Embora com algum enquadramento científico, trata-se de um projeto tipicamente colaborativo de membros de uma comunidade não-académica. São diplomatas ou mulheres de diplomatas que conduzem as entrevistas, no pressuposto de que isso poderá mais facilmente conquistar a confiança dos entrevistados. Os utentes têm acesso às transcrições das entrevistas (em formato PDF), que estão referenciadas num índice onomático facilmente pesquisável. Para quem recorre aos arquivos do Foreign Office, em Kew Gardens, este espólio é um ótimo complemento, na medida em que nos fornece todo um contexto acerca de acontecimentos e processos que encontramos na documentação oficial, bem como de quem os produziu. De repente, o clerk anódino, ou o embaixador circunspeto, podem ganhar uma outra vivacidade!