A Primeira República na Cinemateca Digital
Alice Samara
Começo sempre por procurar nos arquivos digitais – assumindo que parte do meu encantamento se prende com a ilusão de que estou a entrar no centro do arquivo, que não fico cá fora. Dir-me-ão que não é assim, mas a minha relação com os arquivos também se faz destes pequenos nadas de contentamento. Estou no coração do arquivo, avanço, recuo, faço procuras paralelas. Tudo no meu tempo.
Começo sempre por procurar nos arquivos digitais – assumindo que me vou perder com maior facilidade. Apesar de ter um objeto de pesquisa razoavelmente definido (ou assim o espero), sou levada a ver outros materiais que inicialmente ou nem sabia que existiam ou nem pensava que me podiam interessar. Não passamos todos por isso? Pode mesmo acontecer que a entrada num arquivo digital me leve a outro e a outro. A facilidade das ligações acentua esta tendência.
É na página da Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, “organismo nacional que tem por missão a salvaguarda e a divulgação do património cinematográfico”, que encontramos o separador que nos dá acesso à Cinemateca Digital.
De acordo com a informação no site, a Cinemateca Digital foi criada em 2011 fruto da participação portuguesa “no projecto European Film Gateway – consórcio constituído por 16 cinematecas e arquivos fílmicos europeus enquanto fornecedores de conteúdos e 6 entidades fornecedoras de serviços tecnológicos –, que funciona como agregador sectorial para o portal Europeana”. Começar para a pesquisa que nos trouxe até aqui ou saltar para o European Film Gateway ou para a Europeana? Este arquivo tem um acervo específico que se prende com a seleção da Cinemateca, que “adoptou como critério o tema da produção portuguesa de não-ficção do período 1896-1931 (…)”. Assim, podemos encontrar representações digitais de filmes, material gráfico e textos, diretamente relacionados com o que encontramos no arquivo. Contudo, a minha pesquisa no que a estes dois tipo de fontes diz respeito foi mais limitada – e idealmente gostaria de poder ver os números completos ou poder saltar para outro arquivo com imprensa. O que procuro, sobretudo, são as imagens em movimento.
Mas este é um arquivo em crescimento: de acordo com as informações da página, estão disponíveis mais de 900 filmes. Também já não se limita à primeira baliza temporal, chegando a 1974.
Gosto da forma como a pesquisa é apresentada: explicando que se pode folhear – evocando o prazer do papel num arquivo digital – por tipo, ou seja, vídeo, imagem e texto. Por palavra ou por ano, a pesquisa é simples e intuitiva.
A disponibilização deste acervo é de significativa importância tanto para investigadores, e não penso, claro está, apenas em historiadores, mas para todos que, de múltiplas perspectivas, interroguem as imagens. Este arquivo online beneficia ainda, por exemplo, professores de todos os graus de ensino que o podem utilizar como um recurso educativo. O uso de imagens em movimento na sala de aula tem um enorme potencial para a mobilização dos estudantes, nomeadamente aqueles cuja aprendizagem se centra na componente visual (visual lerners). As imagens ser pensados como fonte ou como documento, mas o trabalho em sala de aula pode contribuir para a literacia visual, a educação do olhar, pensando criticamente as imagens em movimento. (veja-se por exemplo: Moving Images in the Classroom). Graça Lobo apresenta três grandes domínios de utilização do cinema na escola: “ensinar com o cinema”, “ensinar pelo cinema” e “ensinar o cinema”, que nos ajudam a pensar esta questão. Em rigor, e pensando em quem pode ter acesso a arquivos online – sabendo que é menos universal do que gostamos de pensar – este pode ser um arquivo cujo acervo concita a curiosidade e o interesse de um número muito significativo de pessoas.
Podia ter escolhido uma expressão, uma palavra, mas escolhi um ano: 1911. Foi esta uma das primeiras pesquisas que fiz neste arquivo. A primeira de muitas, algumas das quais não se limitando ao período da I República – que, compreensivelmente, não tem um volume de imagens em movimento tão significativo como os períodos posteriores.
De entre os filmes disponíveis para o ano de 1911, encontramos as Incursões Monárquicas: Do género documentário, com a duração de 12:42 minutos, surge descrito como: “Reportagem em Vinhais após a 1ª incursão monárquica chefiada por Paiva Couceiro: exercícios militares e guerrilha, instrução aos civis, patrulhamento das estradas, captura e prisão dos monárquicos.” Foi, precisamente, por causa desta descrição que o vi a primeira vez. Queria ver como fora construída a narrativa dos defensores da República, como é que era filmada. E queria pensar em quem a via e como a via. Mas queria ver os carbonários – que povoavam a minha imaginação quando trabalhava este período. Nesse sentido, quase que se pode confundir este meu desiderato com uma forma de voyeurismo? Depois de os ver comecei a olhar para outras coisas: para as outras pessoas, além de monárquicos e republicanos, para as casas, para as ruas, para os campos. Depois de o ver mais do que uma vez, recordo que aí pelo minuto 8:25, uma galinha surge no plano. Os carbonários levam os paivantes (ou seja, os apoiantes do monárquico Paiva Couceiro) para a prisão. Era essa a indicação do intertítulo. Talvez durante muito tempo procurasse apenas a confirmação nas imagens do que já conhecia. E do lado direito do plano, uma galinha. Foi através da galinha que me comecei a perguntar o que me faltava ver. O que ainda não sabia ver. Levando-me assim a questionar a forma de olhar e pensar das imagens (em movimento ou não) apenas como ilustrativas.
Começo sempre por procurar nos arquivos digitais – assumindo que parte do meu encantamento se prende com a possibilidade de aprendizagens, além do seu acervo.