Ultrapassar a nostalgia. O uso do arquivo online da RTP na investigação historiográfica
Rita Luís
Para quem se dedica ao estudo do século XX, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial, a centralidade da televisão é muitas vezes reconhecida e poucas vezes abordada. As razões são de ordem diversa, nomeadamente as pragmáticas, invocadas pelos historiadores portugueses com frequência: “Ir ao arquivo da RTP? Como é que isso se faz?” Considerado durante muito tempo inacessível aos investigadores, o arquivo audiovisual da RTP é muitas vezes contraintuitivo para um historiador. É necessário saber o que se quer visualizar de antemão, não está pensado para receber investigadores que o queiram passar a pente fino, como aliás acontece, em certa medida, noutros arquivos audiovisuais. Consultar documentos audiovisuais é também isso mesmo: consultar, tirar notas e, ao contrário de outros arquivos, não levar o documento connosco, nem poder facilmente regressar para uma nova leitura, mais contextualizada. Neste sentido a iniciativa de ter um arquivo online promovida pela RTP veio facilitar o trabalho de muitos investigadores. Veio, aliás, abrir portas ao trabalho de historiadores, que finalmente deixam de ter uma resposta imediata à secundarização de um elemento central da modernidade experienciada na segunda metade do século XX – sobretudo em países onde a taxa de alfabetização não se traduzia num massivo público leitor, como Portugal.
O Arquivo Online da RTP é uma ferramenta francamente útil, pese embora algumas questões de ordem técnica que devem ser tomadas em conta pelo investigador: o conteúdo disponível encontra-se selecionado pelo arquivo e essa noção deve estar sempre presente. O material foi disponibilizado porque foi considerado relevante pelos arquivistas, logo uma pesquisa no arquivo deve deixar de lado a ideia de exaustividade. Também porque, dadas as condições de produção e conservação do material audiovisual, o arquivo nunca poderá ser exaustivo, pois algum material já não existe ou nunca existiu. Os excertos do telejornal que podemos lá encontrar carecem do alinhamento em que se inseriam, da apresentação do locutor, enfim, do enquadramento que permite aceder ao que seria a agenda mediática da televisão, pelo menos até ao momento em que este segmento passou a ser gravado. O trabalho do investigador torna-se, desta forma, intenso e, em ocasiões, dado à frustração: os meta-dados disponíveis nas opções do motor de busca são algo rudimentares e não incluem, por exemplo, a possibilidade de procurar por data de incorporação no arquivo. Como o trabalho de disponibilização de material é, felizmente, permanente, uma pesquisa feita num determinado momento, por ordem cronológica, por exemplo, pode levar alguns dias de trabalho e rapidamente tornar-se obsoleta.
Apesar destas questões, a capacidade de consultar, no próprio computador, documentos audiovisuais sem limitação de visualizações abre um campo de possibilidades que os historiadores deveriam explorar mais frequentemente. Não só os investigadores dedicados à história dos meios de comunicação e à história cultural, aqueles interessados na imagem em movimento ou nas representações, ou seja, aqueles que tomam os meios de comunicação como actores e não apenas como fontes, mas também o investigador dedicado à história política, económica ou social pode encontrar neste arquivo os eventos, os dados, o quotidiano, em suma, o contexto que habitualmente procura na imprensa escrita, uma fonte habitual. Trata-se de um quotidiano tanto mais completo quanto mais avançamos no tempo, uma vez que o desenvolvimento tecnológico permite uma conservação cada vez mais extensa do arquivo, nomeadamente a introdução do videotape em 1964, que permitiu uma maior facilidade de gravação de programas (mas também a reutilização das K7, o que dificultou a sua conservação) e, posteriormente, a passagem ao digital.
Assim, o investigador interessado no fenómeno religioso pode encontrar no arquivo uma panóplia de documentos sobre cerimónias religiosas, sobre o papel da igreja na assistência social, entrevistas com vários responsáveis eclesiásticos, inaugurações de monumentos religiosos, etc. Do mesmo modo, o investigador interessado na questão da habitação encontra ali informação que extravasa a barreira cronológica do Estado Novo, podendo analisar documentos produzidos entre 1959 e 2019. É particularmente interessante a evolução desta questão nesses sessenta anos: desde as visitas aos bairros económicos, características das décadas de 60 e 70, à vulnerabilidade das habitações autoconstruídas aos desastres naturais, como sejam as cheias e os incêndios, documentando a fraca qualidade da habitação nas zonas urbanas, passando pelo período de solução de problemas urbanísticos fomentado pela derrocada do Estado Novo a 25 de abril de 1974, e de denúncia de problemas, como as dificuldades com o arrendamento, que tal como as questões associadas aos programas de realojamento convocam a actualidade desta questão.
É de notar, por fim, que às limitações técnicas do arquivo audiovisual acresce, tal como no caso da imprensa escrita, a necessidade de a consulta ter presente a censura exercida sobre os meios de comunicação até 1974. Ainda assim, curiosamente, a televisão emitida durante o Estado Novo permite vislumbrar uma lógica transnacional inerente à produção televisiva, matizando a ideia de controlo total por parte do aparelho repressivo do Estado. Neste meio de comunicação, a lógica informativa do regime, de protecção dos interesses nacionais, colide e coexiste com a lógica de dominação mercantil dos produtos e formatos audiovisuais vendidos e comprados em mercados internacionais, nos quais se incluem as notícias.